Publicado em 10/06/2022 às 09:51, Atualizado em 10/06/2022 às 14:28

Fome atinge 33 milhões de pessoas no Brasil, mesmo patamar da década de 90

58,7% dos brasileiros convivem com algum grau de insegurança alimentar (leve, moderado ou grave)

Infomoney,
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Divulgação

Atualmente 33,1 milhões de pessoas não têm o que comer no Brasil, 14 milhões a mais do que no ano passado, e a fome no país voltou a patamares registrados pela última vez nos anos 1990, segundo o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19. A pesquisa anterior, de 2020, mostrava que a fome no Brasil tinha voltado aos patamares de 2004.

O novo levantamento, divulgado nesta quarta-feira (8), também mostra que mais da metade da população brasileira (58,7%) convive com algum grau de insegurança alimentar (leve, moderado ou grave). Especialistas que participaram do levantamento dizem que o desmonte de políticas públicas por parte do governo, o agravamento da crise econômica, o acirramento das desigualdades sociais e o segundo ano da pandemia contribuíram para a piora do cenário.

“Já não fazem mais parte da realidade brasileira aquelas políticas públicas de combate à pobreza e à miséria que entre 2004 e 2013 reduziram a fome a apenas 4,2% dos lares brasileiros (tirando o país do mapa da fome mundial)”, afirma o coordenador da Rede Penssan, Renato Maluf. “As medidas tomadas pelo governo para contenção da fome hoje são isoladas e insuficientes diante do cenário de alta inflação, sobretudo dos alimentos, do desemprego e da queda de renda da população, com maior intensidade nos segmentos mais vulneráveis.”

A gerente de programas da Oxfam-Brasil, Maitê Gauto, diz que a pandemia surgiu neste contexto de agravamento da pobreza e o estado não tinha mais estruturas para responder à altura. Não por acaso, 15,9 milhões de pessoas (8,2% da população) relataram “sensação de vergonha, tristeza ou constrangimento” por terem sido obrigadas a usar de meios “social e humanamente inaceitáveis para obtenção de alimentos”.

A pesquisa é realizada pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), com execução em campo do Instituto Vox Populi, da Ação da Cidadania, da ActionAid Brasil e da Oxfam, entre outras instituições. Os dados foram coletados entre novembro de 2021 e abril de 2022, por meio de entrevistas em 12.745 domicílios, em áreas urbanas e rurais de 577 municípios distribuídos pelos 26 estados e o Distrito Federal. A pesquisa usa a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (Ebia), a mesma usada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

O levantamento aponta que apenas quatro em cada dez domicílios conseguem manter acesso pleno à alimentação (ou seja, são considerados em condição de segurança alimentar), números similares aos do início da década de 90, quando o Brasil tinha 32 milhões de pessoas abaixo da linha da pobreza e o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, lançou uma campanha nacional contra a fome.

“O Auxílio Brasil não responde à altura do problema; embora seu valor seja maior do que o do Bolsa Família, a cobertura dele é bem menor”, afirma Gauto, da Oxfam-Brasil. “Além disso, até o ano passado um salário mínimo era suficiente para que a pessoa não entrasse em situação de fome; nesta pesquisa, isso já mudou, o valor da cesta básica já está batendo o do salário mínimo”.

Fome desigual

A nova pesquisa mostra também que a fome atinge as regiões do Brasil de forma muito desigual. Em média, 15% dos brasileiros estão abaixo da linha da pobreza, mas o porcentual chega a 25% no Norte e 21% no Nordeste.

A situação também é pior entre os negros e as mulheres. Segundo o levantamento, 65% dos lares comandados por pessoas pretas e pardas convivem com alguma restrição alimentar (comparando com o primeiro inquérito, a fome saltou de 10,4% para 18,1% dos lares comandados por pretos ou pardos).

As diferenças também são expressivas na comparação entre lares chefiados por homens e mulheres. Nas casas em que a mulher é a pessoa de referência, a fome passou de 11,2% para 19,3% (nos lares em que os homens são os responsáveis, o salto foi de 7,0% para 11,9%). Segundo os pesquisadores, isso ocorre por conta da desigualdade salarial entre os gêneros.

Outro dado preocupante levantado pelo estudo é que, em pouco mais de um ano, a fome dobrou nas famílias com crianças menores de 10 anos de idade — passando de 9,4% em 2020 para 18,1% em 2022. Na presença de três ou mais pessoas com até 18 anos de idade no grupo familiar, a fome atinge 25,7% dos lares. Já nos domicílios apenas com moradores adultos, a segurança alimentar chegou a 47,4%, número maior do que a média nacional.

Onde não há fome

Praticamente não há fome nas famílias com renda superior a um salário mínimo por pessoa. Em 67% desses domicílios o acesso a alimentos é pleno e garantido. Ainda assim, 33% das famílias enfrentam algum grau de insegurança alimentar. A fome é maior nas casas em que a pessoa responsável está desempregada (36,1%), trabalha na agricultura familiar (22,4%) ou tem emprego informal (21,1%).

A segurança alimentar, por sua vez, é maior nos lares em que o chefe da família trabalha com carteira assinada (53,8%) e entre os que têm mais de oito anos de estudo (50,6%).

Falta de alimentação

Cerca de metade das famílias que deixaram de comprar arroz, feijão, vegetais e frutas nos últimos três meses, convivem com insegurança alimentar moderada ou grave. Entre as famílias que deixaram de comprar carne nos três meses anteriores à pesquisa, 70,4% estavam passando fome. Dados semelhantes foram encontrados nos lares onde os moradores não haviam comprado frutas (64%) e vegetais (63,6%).

“Esse é outro problema sério”, diz a professora do Instituto de Nutrição Josué de Castro, da UFRJ, Rosana Salles, pesquisadora da rede. “Estamos abrindo uma janela para o aumento dos índices de doenças crônicas na população por conta da alimentação ruim.”

Combate à fome

“Reverter essa situação é um desafio muito grande”, constata Rosana Salles. “Vai depender da reestruturação das políticas de governo, das políticas de combate à fome e à miséria, da valorização do salário mínimo, do controle dos preços da cesta básica. Além, é claro, da reestruturação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea).”

Maitê Gauto lembra ainda que medidas emergenciais devem ser tomadas o mais rapidamente possível. “Precisamos de programas de proteção social e transferência de renda para que essas pessoas possam se manter com dignidade enquanto a recuperação econômica não acontece; precisamos garantir as condições mínimas de sobrevivência para as famílias”, diz. “É preciso também qualificar o Programa Nacional de Alimentação Escolar, que também vem sendo desmontado.”